quarta-feira, 6 de maio de 2009

o descaso que condena

interromper
in.ter.rom.per

1 Fazer cessar por algum tempo;
2 Cortar ou romper a continuidade de;
3 Suspender;
4 Destruir, extinguir;
5 Cessar ou parar momentaneamente;
6 Deixar de fazer temporariamente;
7 Cortar, desligar (uma corrente de qualquer fluido);
8 Calar-se, falar de coisa diversa do que vinha dizendo, não continuar a fazer o que estava fazendo;
9 Cortar a palavra a;
10 Embaraçar, estorvar.


Em algum ponto muito além do permitido eu permaneci olhando o dicionário, varando a noite como se pudesse, como se fosse plausível.
Olhava aquele bando de palavras. De definições que não definiam nada. De explicações que confundiam, de adjetivos, de substantivos, de advérbios e todo lixo lindo da língua portuguesa.
Ali eu permanecia tentando encontrar algum sentido que não fosse tão vago naquelas palavras, tentando formar uma frase pra ligar pra ele e dizê-la.
Algo como: você não devia ter nos in.ter.rom.pi.do.
Mas eu não conseguia. Por mais que eu me esforçasse, por mais que eu lesse o maldito dicionário, fugia de mim. As palavras, os sentidos, tudo.
Ali eu ficava. Imaginando também.

Ele estava do outro lado da cidade, bêbado, cheirado, tanto faz.
Mas estava. E isso me dava uma sensação de companhia, uma sensação de ‘tudo bem, tudo bem’.
Mas não estava tudo bem.
Ele estar na mesma cidade que eu não me dizia nada. Não me era nada.
Eu tinha a sensação estranha de acreditar.
Acreditar que quando ele disse ‘me dá notícias suas, qualquer coisa me liga. Qualquer coisa mesmo’ 
Daquele jeito que ele sempre enfatizava o ‘mesmo’ final me dava a tal sensação de acreditar.
Mas era só uma sensação.
Porque eu não podia. God, eu não podia ligar e dizer ‘tô mal, vem aqui’.
Eu não podia dizer que sentia sua falta ou que precisava dele por mais um tempo, que nunca estive pronto para deixá-lo ir. Não podia.
Pensei em mentiras. ‘Você esqueceu seu suéter favorito aqui, aquele que compraste em Bogotá, vem buscar.’
Não podia. Ele não tinha um suéter favorito. Muito menos de Bogotá.
Eu não sabia o que fazer. Talvez só estivesse perdido e continuava a imaginar.

Ele está do outro lado da cidade, bêbado, cheirado, tanto faz.
Pensando em mim, quem dera.
Pensando em nós, pudera.
Pensando e só.
Era bom imaginar alguma coisa bem inverossímil do tipo: ele está mal, está com saudades, está pensando em mim, no nosso lar e em todas as coisas que nos envolvem.
Não, ele não está com um puto qualquer, daqueles que se arranjam em bares e esquinas.
Não, ele não está tendo um orgasmo agora, não está sendo chupado por um menino daqueles bem bonitinhos.
Não.
Ele está pensando em mim. Eu, com todos os meus defeitos físicos e mentais, com todos os meus pêlos que o irritavam, com meus medos e minhas dúvidas homéricas, todo aquele lixo que fazia parte de mim o encantava.
Cada detalhe meu, do mais nojento ao mais nobre o encantava.
Era bom imaginar isso.
Era bom imaginar que ele agora estivesse pensando em mim e nos meus insuportáveis defeitos.
Porque ele me ama, certo?
Por favor, diga que ele me ama e que tudo isso não é imaginação minha, que ele realmente está pensando em mim agora.

Ele está do outro lado da cidade, bêbado, cheirado, tanto faz.
Pensando nas minhas inúmeras qualidades.
Na minha postura centrada, nos meus discursos políticos, no meu gosto musical impecável, na minha seleção natural, em tudo aquilo que o encantava cada vez mais.
Eu era perfeito pra ele.
Eu tinha tudo que ele precisava.
Mas essa parte é invenção minha também.

Ele está do outro lado da cidade, bêbado, cheirado, tanto faz.
Com alguém mais bonito que eu, mais rico e mais interessante que eu.
Ele está em braços mais magros que os meus, mas ainda assim mais macios que os meus.
Ele está em alguma cama mais confortável que a nossa, com lençóis mais brancos que os nossos.
Ele está com gostos diferentes na boca: de vodka, de cerveja, de rum, de cigarro, de diferentes bocas, de diferentes corpos.
Mas eu permaneço aqui, sozinho, na nossa cama dura, nos nossos lençóis amarelados e com o gosto dele se misturando com o gosto de uísque.

Ele está do outro lado da cidade, bêbado, cheirado, tanto faz.
E eu aqui, imaginando comportamentos.
Cagando pra minha vida dentro dessa casa que um dia teve ele, nessas horas.
Talvez agora ele estivesse indo embora da casa do menino bonitinho.
E estivesse atendendo o celular que não pára de tocar nunca.
Entrando no carro, ignorando a ligação e pensando em ligar pra mim.
Mas o telefone não tocou.

Ele está do outro lado da cidade, bêb...
E foi aí que o telefone tocou.

-Alô?
-Oi.
-Quem é?
Eu sabia quem era.
-Você sabe quem é.
E ele também sabia.
-Ah, oi.
-Não te passe por surpreso.
-Não reconheci tua voz, desculpe.
-Enfim, como está tudo por aí?
-Tudo o quê?
-Tudo, sabe lá. Você e tua vida.
-Eu vou muito bem. E minha vida também. E a tua, como vai?
Eu precisava mentir, não queria que ele desligasse ao se deparar com minha tamanha falta dele.
-Eu vou do jeito que der pra ir, você sabe.
-Hum.
-Certeza que você tá tão bem assim?
-... Sim.
-Sei. Então, era só isso.
-Era só pra saber como tá tudo?
-Por aí. Tenho que ir viu. Acordo cedo amanhã, dia longo. Espero que você fique bem de verdade e que não minta pra mim na próxima vez em que eu ligar. Um beijo pra você.
Só consegui responder ‘outro beijo’.

E ele desligou.
Estava do outro lado da cidade, bêbado, cheirado, tanto faz.
Em casa, de pijama e por algum tempo, pensando em mim, a ponto de me ligar pra saber ‘como tá tudo’.
Peguei o dicionário, pus na gaveta e pensei que, felizmente, essa parte eu não tinha inventado.

2 comentários:

Adrielly Soares disse...

AMEI. me lembra tanto Caio Fernando as coisas que você posta.
[Sim, isso é um elogio]
Talvez o que faça eu gostar mais ainda de vir aqui.

um beijo.
:)

Rayla disse...

esse me doeu
mas ficou lindo, como sempre =)