domingo, 29 de junho de 2008

a walk on the wild side/jack daniel's

“Quartas sempre são assim... Às vezes por volta das duas chega alguém, alguém bêbado e fedendo, pra pedir mais cachaça.

Mas não posso reclamar, às sextas que as coisas ficam boas...”.

Não entendia porque exatamente ficava ali, conversando com o dono do bar, mas era o que tinha pra fazer, além de beber.

-Quanto é que tá dando?

“Nada que você não possa pagar, guria”

Acenei com a cabeça e dei um sorrisinho.

Comecei a reparar o bar, era aconchegante, escuro, velho e cheirava bem, apesar dos pesares.

Havia mesas no fundo, onde também havia uma foto enorme do John Lennon, e ao lado, uma Vênus de Millo muito bem feita, era charmoso. Tinha um monte de coisas que eu não conseguia identificar, mas davam um toque bonito.

“Sabe, guria, este bar é o mais velho de Porto Alegre, quando cheguei aqui era tudo diferente, cheguei aqui quando o Hugo Boss fazia roupa pra operários...”

O velho era inteligente, sabia quem era Hugo boss, pelo menos.

Eu só acenava com a cabeça.

“Quer me falar de você, filha?”

Num ímpeto, quase disse sim, mas depois consegui dizer “não”.

O velho respirou fundo e disse: “Já entendi, veio aqui pra beber e provavelmente esquecer alguma coisa, e este velho solitário está a te incomodar, não é?”

Ele estava certo, eu ri porque não podia concordar, era deseducado.

Fiz sinal com a mão pra descer mais uma dose, é claro que eu tô afim, o uísque descia quente no copo, e depois na minha garganta.

Interrompendo um silêncio de muitos minutos, eu disse:

-Tu podes pôr uma música?

“Bah, mas claro! O que tu ouve?”

-Qualquer coisa...

O velho levantou e foi até uma pilha de discos perto da Vênus, e tirou um velho conhecido.

“Vicious, you hit me with a flower…”

O maldito havia acertado de novo, a noite pedia Lou Reed, só soube disso quando começou.

“Guria, tu curte uma marijuana?”

Eu já estava meio bêbada, assumi que sim.

“Tenho uma boa aí, se tu quiser, é só avisar.”

Apesar de falastrão, o velho era simpático.

“E nem te preocupe com os porcos, eles me acham moralista, Hahaha!”

Dei uma risada junto com ele, estava realmente bêbada.

Beirava meia-noite, era tudo muito parado, exceto pela música.

Agora era... Não me lembro... Andy’s Chest?, eu acho que sim.

-Como o senhor se chama?

“Eu me chamo Érico”

-Eu sou Júlia, desculpe a falta de educação.

“Mas que nada, os diálogos só se desenvolvem quando a bebida entra”

-O Senhor é sábio.

Foi a vez dele de acenar, como se fosse um agradecimento.

“Não quer mesmo falar de você? Teu semblante é de gente interessante.”

-Eu sou tão interessante quanto um copo de água.

“Eu gosto de água”

-Ok, o senhor quer saber o quê?

“O que tu quiser me contar, sou bom ouvinte”

-Vejamos... Estou vindo de Londrina, uma longuíssima viagem, vim única e exclusivamente pra ver uma pessoa e essa pessoa estava embaixo de outra pessoa quando cheguei e.

“Calminha, vamos por partes... Usemos nomes”

-Sexos?

“Certo, vale.”

-So, eu vim ver minha namorada, ou ex namorada, sei lá.

E a filha da puta estava com um cara.

“O que te incomoda é a traição ou o que a pessoa tinha no meio das pernas?”

-Vai além disso, seu Érico.

“Como?”

-A gente se gostava muito. Na verdade, eu tinha um amor muito grande por ela, coisa de cinema.

“Não tem mais?”

-Eu tenho, mas nesse momento eu não quero ter.

“Ela sabia que tu vinha?”

-Sabia.

“Calculou errado né...”

-É. Aposto. É bem a cara dela, errar até na hora de calcular o tempo em que eu iria chegar, com o tempo de dar umazinha com um pau, pra variar.

“Você faz a situação parecer engraçada.”

-Desvio de dor.

“Então, vocês se falaram depois disso?”

-E precisa falar? Eu só saí.

“E como vai ficar agora? Perdoa as perguntas...”

-Sei lá. Não quero vê-la, pelo menos por enquanto.

“Bah, mas vocês precisam conversar”

-Precisamos?

“Sim. Não foi justo com você, e nem foi justo com ela”

-Não foi justo com ela o que, meu deus?

“Você não falou nada, é horrível. Imagina, guria.”

-Tomara que seja mesmo horrível.

“Eu entendo sua dor, mas vocês precisam conversar, ao menos pra ter um fim.”

-Ela não merece um fim.

“Tudo bem, vai mais uma?”

Era bom me abrir com alguém. Com desconhecidos é sempre um pouco melhor.

Tocava “Walk On The Wild Side”, eu fazia air guitars, ou air basses, e ele achava graça.

-Me fala de ti também.

“Eu sou só um velho, minha querida”

-Já levou um chifre?

“Mas é claro! Quem nunca levou?”

-Eu nunca tinha levado.

“A primeira vez é a pior, fica tranqüila, já passou.”

-Ainda nem começou.

“Amar é sofrer, minha querida, por isso só amo esta vida e o pouco que ainda posso ter dela”

-E as mulheres?

“Estou muito velho pra elas, agora só quero conversas e umas músicas.”

-Sabe, eu não quero deixar de fazer sexo quando tiver mais de cinqüenta.

“É difícil, vou lhe avisando. Ninguém quer genitálias flácidas...”

-E se eu casar?

“Ninguém quer mesmo assim, mas tu pensa nisso?”

-Quem não pensa?

“Deus a livre, guria. Casar é dar adeus à vida.”

-Nossa.

“Você deixa de viver, casado ou separado. Separado ainda é pior.”

-Vejo que alguém tem uma extensa experiência no assunto, não é?

“Eu tive meus momentos”

Parei por alguns segundos, enquanto ele ia até a prateleira pegar mais uma garrafa.

Umas lágrimas apareciam nos meus olhos, a bebida não perdoa.

-Por que ela fez isso comigo?

Ele me olhou com um olhar de “continua”

Sabe, seu Érico, não sou má pessoa, levanto do banco do ônibus pros velhinhos sentarem, dou bom dia pra quem não conheço, e acho que até fui uma boa namorada pra ela.

Faltei várias vezes meu trabalho pra estar com ela, tranquei faculdade, ligava sempre, escrevia quando dava, isso foi muito injusto.

“Sabe, Júlia – Posso te chamar assim?”

-É meu nome.

“Então, imagina aqui comigo: Quantas pessoas bacanas como você existem?”

-Sei lá. Muitas?

“Sim, muitas. Agora imagina: Se ser legal, atenciosa e sensível fosse requisito pra ter sucesso no amor, muita gente teria conseguido, não é?”

-É.

“Leia “Crônica do amor” do Arnaldo Jabour, ele fala disso. A gente ama os cafajestes, os cretinos, os que fodem com nosso coração, amar os sinceros, os igualmente atenciosos, os bonitos e não-fumantes é clichê de mais.”

-Eu errei quando disse que o senhor era sábio. O senhor é muito sábio...

“Eu leio muito”

Ficamos em silêncio novamente, e o Lou cantava: “Oh, It’s a lonely Saturday night...”

-Ia ficar perfeito se fosse Thursday night.

“É. Tu não acha que tá na hora de parar?”

-O quê?

“De beber.”

-Não.

“Ela não merece um fim, mas merece que tu encha a cara?”

-Não estou bebendo por ela.

“Tá bebendo por que então?”

Fiquei em silêncio, ele tinha razão.

-Ok, quanto lhe devo?

“Nada.”

-Hein? Eu tomei quatro garrafas do teu uísque mais caro.

“Hoje é quarta-feira, e eu tive sorte de tu não ser um bêbado fedido.”

-Justamente por isso, devo pagar

“Guria, guarda teu dinheiro. Meu pagamento é tu pedir um táxi e me deixar dizer pro motorista te levar pra um hotel seguro, pra você dormir.”

-Eu te dou um prejuízo e tu ainda se preocupa?

“Você já passou por coisas de mais hoje”

-É.

Levantei com um pouco de dificuldade, esbarrando no apoio, nos copos... Ele logo correu pra frente do bar e pegou no meu braço, fomos andando até a porta, beirava uma e meia.

“Agora tu me espera sentada aqui, vou ligar pro táxi”

Sentei na mesa próxima a porta, enquanto o velho telefonava.

Eu enxergava pouco, minha visão estava turva.

Ele voltou, tinha um olhar calmo e mãos ásperas.

“Pronto, ele chega já”

-Obrigada.

O disco estava no repeat, quando tocou a terceira música de novo, o táxi buzinou, estávamos em silêncio.

“Perfect Day”, que ironia.

“Vamos lá, guria, deixa pra dormir no hotel!”

Entrei no carro, não lembro nem como, e ele falou o que disse que falaria pro motorista, voltou-se pra mim e:

“Tu tá vendo essa noite? Esse céu? Interprete tudo como um sinal: Ela não merecia olhar este céu contigo agora”.

Na hora não liguei, devo ter sorrido, não sei.

Depois daquela noite voltei pra Londrina, depois Ponta Grossa, e estou lembrando das palavras dele, e do céu daquela noite...

A vida está lá fora esperando uma chance, sim.