quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

A dança

No quarto:
-Acorda, anda!
-Já tô acordada.
-Desde quando? Das duas?

Foi aí que eu levantei.
Quando percebi que tinha adormecido novamente e que já passava das duas da tarde.
Recolhi meus cacos ainda dormentes, o cinzeiro e o copo ao lado da cama e fui em direção a janela.

Aí eu abri, mentira, não abri não... Só olhei através do vidro, todo o movimento humano e urbano que passava diante dos meus olhos e saí.

No banheiro:
-Porra, como eu tô gorda!
Dane-se, dieta e academia é pra losers.

Nesse monólogo eu terminei de tirar as roupas e entrei no chuveiro frio, bem frio.
Liguei o rádio (é, o rádio do banheiro) com o braço que ainda estava seco e nem me dei o trabalho de passar pelas estações de rádio, pus no cd mesmo.
“O bloco do Eu sozinho”
-Todo carnaval tem seu fim... Que conveniente.

Comecei e terminei meu banho pensando na vida, como de praxe.
Pensando muita coisa vazia, coisa que todo mundo pensa no banho...
“Será que o mundo tá derretendo mesmo?”

Na sala:
-Vai sair?
-Vou.
Vou à casa do seu tio, comporte-se.
-Eu também vou, acho.
-Comigo?
-Não, eu também vou sair...
-Tá, tchau e não esquece de trancar a porta.
-Tá.

No quarto:
-Droga! Esqueci o rádio do banheiro ligado.

Foi muito conveniente ter que desligar o rádio em “Sentimental”, porque não é uma música escutável todos os dias, sabe?
Tem dias que é bom nem lembrar da letra assim, involuntariamente...

Na sala:

[Trim, Trim]
-Alô.
-Alô, é da casa do Roberto?
-Nenhum Roberto.
-Oi?
-Eu disse que não tem nenhum Roberto aqui...
-Ah! Desculpa, tchau.

Na varanda:
Tomei meu café da manhã às 16hrs, olhando as coisas na rua, a garoa, e a garota.
-Oi!
-Oi.
-Tem café aí pra mim também?
-Só fiz uma xícara.
-Ah! Tudo bem, mas aí não tem o suficiente pra duas?
-Talvez.
-Então passa pra cá!
-Quer um cigarro?
-Quero. Mas tu vai ter que me deixar entrar, pois se minha mãe vir... me faz picadinho.
-Entra.
-Valeu.
E aí? Já voltou às aulas?
-Não. E Você?
-Também não
-Naturalmente, já que vamos estudar na mesma escola...
-Jura? Então por que perguntou?
-Sei lá.
Toma o cigarro.
-Valeu.
Tem fogo aí?
-Que pergunta capciosa.
-Eu digo fogo de acender cigarro.
-Alguns podem acender um cigarro...
-O seu?
-O meu não acende nada.
-O meu acende!
-Então pra quê precisa do meu isqueiro?
-Deixa de ser besta, cadê?
-Aqui.
-Sabe, olha essa chuva!
Tão despretensiosa, gosto de coisas despretensiosas.
E você?
-Eu sou indiferente.
-A tudo?
-Não.
Mas por que a chuva é despretensiosa?
-Porque ela simplesmente chove...
-É.
-Você também é despretensiosa, não é?
-Nem um pouco.
-Eu acho!
-Eu também gosto de você.
-O que?
-Você disse que gosta de coisas despretensiosas, e pra você, eu sou despretensiosa.
Portanto, também gosto de você.
-Eu não gosto de você.
-Nem eu.

(silêncio)

-Preciso ir.
Valeu pelo café, tá muito bom.
Pelo cigarro e pela prosa também.
-Por nada.
Apareça.
-Apareço.
-E traga um disco, quero saber o que anda ouvindo.
-Ok! Tchau!
-Tchau.

Esse foi o diálogo com a “garota ao lado”.
Nós não estudamos juntas desde a primeira série, como no Homem Aranha e em Transformers... Mas o sentimento era semelhante ao deles.
Ah! Mas, como eu sou uma pedra podre, com direito a lodo e tudo... Nunca tive coragem de lhe falar um “Oi”.
Esperem aí, vou pegar um disco...

No corredor:
Voz Distante: Oi! Oi! Oi!
-Ah, é você.
-Por que “Ah, é você”?
-Porque Ah, é você...
-Trouxe o disco.
-Pensei que ia demorar.
-Não demorei?
-Deu tempo de eu entrar, pôr mais café no fogo e até pegar um disco...
-Então eu demorei?
-Não.
O que tem aí?
-Chico.
-Jura?
-Uma expressão menos despretensiosa, que legal!
-Me deixa ver.
Que CD é esse?
-É o meu...
-Qual é o seu?
-É o que mais gosto.
É meio chato ficar toda hora procurando discos, só pra ouvir uma aqui, outra ali...
-Uma decisão inteligente.
-Decisão ordinária, todo mundo faz isso!
-Vamos ouvir.
Entra.
-Licença.
-Não tem ninguém, não precisa pedir.
-Tem você, é questão de educação.
-Continua não tendo ninguém.
-Já ouviu “Do amor”?
-Bubu?
-Isso!
Muito bom né.
-Não gosto das vertentes de bandas.
-Nem de New Order?
-Me pegou.
-Põe o disco aí.
-Então essa é sua coletânea pessoal do Chico...
-Isso!
-Apesar de você... Ponto.
-Quero sambar.
-Haha, a sala é sua, meu bem.
-Vem comigo?
-Não tenho os tais dons femininos...
-Não precisa, vem!

Nas nuvens:
E nós fomos “duas a rodar” por mais ou menos três minutos.

-Carolina.
-Essa não dá pra sambar...
-Dá pra chorar.
-Você chora? Uau!
-Só ás vezes, e é tão freqüente.
-Isso é Caio Fernando Abreu.
-O que?
-“Chorar só choro às vezes, e é tão freqüente.”
-Bonito, mas não conheço.
-Devia ler ele, é muito bom!
-Um dia, talvez.
...
-"Amaram o amor urgente..."
-Você tem bom gosto pra Chico.
-Eu tenho bom gosto só de gostar de Chico...
-Verdade.
-Prestenção na última!
-Tô prestando desde a primeira...

(pausa)

-Essa você dança comigo?
-Não dá pra sambar.
-Mas não é pra sambar...
-Como se dança essa?
-Assim.

Na segunda nuvem:

Foi aí que ela pegou em minha mão e me levou junto ao corpo dela...
E naquele momento tudo deixou de existir.
Só existia aquela sala, aqueles corpos, aquela música, a fumaça dos nossos cigarros e a chuva lá fora.

-Obrigada pela dança.
-Você dança bem!
-Nada, pisei no seu pé quantas vezes?
-Se pisou, eu não senti!
Mas eu pisei no seu uma vez...
-Eu não sentiria nada.
-Uhn, então vou embora, tá bom?
-Tudo bem.
Quando e se voltar, traga mais algumas coletâneas pessoais.
-A próxima será...
-Eu gosto de surpresas.
-Ok! Então será uma surpresa.
Assim como “Tatuagem” no final do disco e como dança!
-Isso, exatamente assim
- Até loguinho, obrigada pelos cafés, pelos cigarros e pela prosa.
-Nada.
-Um dia eu pago!
-Já pagou, meu bem.
-Paguei foi?
-Uhum.
-Como?
-Pisando no meu pé.

Aí ela deu um riso tímido e disse:
-Até mais, e vê se mente melhor escondendo o “Morangos” do Caio ali, tá bom?

De volta ao chão.


Chico Buarque - Tatuagem