quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

a puta que te pariu

Minha querida,
Venho lhe dizer que o ano já acabou e que é tempo de resoluções. Você já conseguiu se dar conta disso?
Espero que as imagens e as coisas confusas da sua cabeça tenham sumido.
Antes que me pergunte, eu estou bem. Só extremamente alienada, o que não é novidade.
Se lembra de quando você achava que alienada era a forma fácil de dizer abduzida?
Sinto falta do tempo em que tudo que passava pela sua cabecinha era inocência e um sentimento doentio por mim.
Sinto falta também dos teus abraços apressados, os corridos a vinte metros de distância de mim.
Eu até já sei a sua resposta: Os tempos mudaram.
Você não precisa me dizer isso, e mais: você não pode me dizer isso. Você é uma criança e eu sou adulta. Você tem que me respeitar.
Antes que me interrompa de novo, eu sei que você não foi desrespeitosa, não precisa ficar brava.
Você ainda fica brava por eu te interromper?
Acho que interromper seus pensamentos deve ser mais chato que interromper seus discursos.
Peço desculpas.

Nunca fui boa com as palavras.
Lembra quando eu te dizia que eu só era boa com o corpo?
Pois é, minha vez de dizer que os tempos mudaram.

Mas queria te falar da minha saudade que já não me cabe no peito.
Aliás, não sei se posso falar-lhe, posso?
Quem cala consente, posso.
Sinto saudade do tempo que eu te era uma heroína, que tu me colocava num altar.
Mas como tem naquela música lá: “Que tempo bom, que não volta nunca mais...”.
Não volta.

Queria te falar dos meus arrependimentos também.
Mas creio que seja um tanto tarde.
Eu só queria que você soubesse, minha querida, que ser mãe não é fácil.
Ser mãe é pisar no próprio dedo, ser mãe é morder a língua.
Ser mãe é ser repugnante: a gente é obrigado a falar mal de tudo que admira, pra não dar asas pros filhos.
Quem disse que Deus não dá asa pra cobra? Deus dá asa até pra leão. As mães que cortam.
Não tem aquela música lá? Só as mães são felizes?
Quem dera.
Felicidade de mãe dura pouco. Dura a compra da primeira roupinha, talvez o choro do bebê depois de sair.
Ah é, eu estava falando dos arrependimentos.
Eu me arrependo quase nunca, você sabe, né?
Mas eu queria te falar o quanto eu me arrependo por ter dito, mais de uma vez, que eu nunca te quis.
Eu queria muito poder continuar sendo repugnante e te dizer que é mentira.
Eu não te queria até o quinto, sexto mês de gravidez.
Depois eu me acostumei com o fato de que tinha uma criança dentro de mim e que eu teria que amar, cuidar e tudo mais.
Isso me apavorou, mas sem medo a gente não é nada.

Me arrependo de não ter participado da sua infância, também.
Vê que bonito? Depois de cinqüenta e tantos anos, eu aprendi a usar vírgula!
E exclamação.
Sabe, meu anjinho, eu queria ter participado da sua infância.
Mas depois que seu pai foi embora, eu desenganei da vida.
Queria mais nada com essa coisa de amor não.
Amor eu só acreditei uma vez, e foi com teu pai, aquele desgraçado.
Foi embora e não me deixou um vintém.
O jeito foi te entregar pros meus pais.

Sabe, meu amor, eu tenho medo quando penso no que você seria se tivesse sido criada por mim.
Acho que você seria burra. E isso seria triste, não acha?
Acho que tu seria magra, uma hora ou outra ia acabar te faltando o que comer.
Também acho que seria sã. Pelo menos isso me conforta.
E mãe. Seria mãe cedo.
Por que?
Minha filha, você seria igual à mamãe.
E mamãe foi mãe cedo.
Sabe, meu bem, te mando essa carta porque gostaria de te trazer algum tipo de lucidez.
Me falaram que no meio das suas crises, você chama por mim.
Vai passar, meu amor.
As coisas na sua cabeça são só coisas da sua cabeça.
Não existem.
Acho que é por isso que te trancafiaram, você acha que é real né?
Sempre foi meio doidinha.

Filha, lembrei agora: sabe aquela música que você cantava pra mim quando era criança?
A do Caetano Veloso, Cajuína.
Lembra o que eu dizia pra você?
Que era uma história de amor e tudo mais.
Como a intenção dessa carta é ser o máximo de honesta possível com você, lucidez e tal, eu vou te dizer a verdade.
Essa música é sobre o suicídio de um amigo de Caetano.
“Existirmos: a que será que se destina?”
Agora faz sentido pra você? Era difícil tentar explicar...

Meu amor, acho que já vou.
Acho que disse tudo o que eu queria te dizer.
Só faltou te dizer que quando você sair daí, você vai morar comigo.

Me responde dizendo quais são suas resoluções. E ah, diz também se o peru ficou bom.
Saudades imensas.
Eu amo você, minha filha.
Me perdoa, tá?
Eu sei que dói... Mas lembra o que eu sempre te dizia?
Quando casar, sara.

Beijos!