sábado, 3 de outubro de 2009

destitulado

-Não pode ser verdade.
Ela sempre me deu uma vida boa. Mas eu nunca disse isso pra ela.
Depois que eu adoeci e consequentemente tive que parar de trabalhar, todo o meu sustento – incluindo vícios e supérfluos – vieram do bolso dela.
Ela nunca reclamou sabe, sempre foi a mulher que todo mundo queria ter.
-Onde você estava até uma hora dessas?
Diferente dela, eu sou do tipo que ninguém nunca sonhou ter.
Tenho todos os defeitos que contribuem pra morrer sozinha: egoísmo, ciúme excessivo, possessão e por aí vai.
Mas ela é do tipo que aceita essas coisas, que acha bonitinho.
-Eu preciso te contar uma coisa.
Ela trabalhava numa multinacional. Não era o emprego dos sonhos dela, afinal, ela curtia essas coisas de comunismo. Mas ela ganhava bem.
Era aquele tipo que a gente chama de “gente boa”. Sustentava a mãe, o pai, o irmão e namorada.
-E você vai?
Ela tinha carro – os pais e eu também - tinha casa na Serra e um monte de amigos. Eu acho que ela era feliz. Digo “acho” porque não se sabe o que passa por dentro de alguém. Ela demonstrava ser feliz, sei lá.
-Por que eu não posso ir com você?
Um dia ela chegou duas horas atrasada em casa. Liguei pro celular umas vinte vezes, fiquei preocupada, sabe... Cidade violenta.
Aí ela me mandou uma mensagem dizendo que chegaria tarde e que não ia poder atender o celular agora.
Eu logo pensei “Ela deve estar com outra”, mas daí eu pensei que bem, ela não ia parar de transar pra me mandar uma mensagem... Mas aí eu pensei de novo que ela poderia ter feito isso pra me despistar.
-Não sei.
Depois de duas horas e alguns minutos ela chegou. Acabada, com cara de quem tinha voltado do enterro da mãe. Eu não sabia se brigava, se dava gelo ou corria pra beijar, como de costume.
Por via das dúvidas resolvi brigar.
-Acho que por um ou dois anos.
Pra minha surpresa, ela tinha ficado no trabalho. Foi chamada pra trabalhar no exterior e que ia ficar lá por tempo indeterminado... Preocupou-se logo em dizer que não ia esquecer de suas obrigações e que ia ligar sempre.
-Eu preciso de paz.
Ela disse que não podia porque era coisa séria. Respeitei, claro. Mas fiquei triste... A gente se ama e ia ficar longe por um ou dois anos, é difícil.
-Você me ajuda?
Abracei ela e disse que tudo ficaria bem. Ela me pegou de surpresa de novo dizendo “nada está bem, como poderia ficar?” e começou a chorar como louca. Não entendi muito, mas senti que ela não queria falar e nem ouvir nada, abracei em silêncio.
-Me passa o telefone.
Fomos dormir nesse dia e no dia seguinte, ajudei ela com as caixas...
-Eu estou colocando minha roupa favorita na caixa e você ainda tá do meu lado.
Ela estava triste. Todo mundo estava. Ela era peça fundamental na vida das pessoas... Era difícil imaginar o dia sem ela.
Imagina alguns anos?
Mas tudo bem, ela precisava de apoio. Vai ficar num país desconhecido por um ano, talvez dois, completamente sozinha... Digo, é claro que ela vai fazer amigos – eis mais uma qualidade dela: é muito sociável – mas sei lá, é diferente.
-Eu não vou conseguir.
Ela não estava feliz em ir. Eu não estava também. Aí eu pensei que talvez isso seria bom pra nós duas. Nossa relação não era das melhores já fazia um tempo. Desde que eu fiquei doente, tenho tido dores constantes. Ela chega do trabalho e vai logo cuidar de mim. Sexo? Nem pensar, faz uns dois meses.
-Você precisa de paz.
Eu queria que ela soubesse o quanto ela vai fazer falta. Mas acho que se eu falar ela não acredita. Ela é muito centrada nas supostas responsabilidades. Bem, ela sabendo ou não, o dia da viagem se aproximava... Era uma coisa às pressas, ela ia substituir um cara que acabou falecendo.
-Você pôs meu celular na bolsa?
Ela vivia reclamando pra eu parar de fumar. Dizia que cigarro só me fazia mal. Bebida também, mas ela também bebia um pouco. Segundo ela, ela precisa de algum vício agora que vai ficar sozinha... Comprou um maço de cigarros no aeroporto.
-Sua mãe não veio?
Ela reclamou durante o caminho todo que ela nem ama esse emprego tanto assim. Mas no fim do discurso disse que ama, mas não ama mais que a vida dela aqui, comigo. Acho que o ‘comigo’ foi só pra me agradar mesmo.
-Então acho que é isso. Vá em paz pra casa, tá bom? Eu ligo quando chegar lá.
Chegando ao aeroporto a mãe dela ainda não tinha chegado. Acho que não ia, dona Marta nunca gostou de despedidas. Elas devem ter se falado por telefone, sei lá. Será que as coisas dela vão chegar direitinho lá?
-Eu ainda sou teu amor.
O vôo dela foi anunciado e eu já estava tensa. Não queria chorar pra ela não se sentir pior. Prendi o choro, acho que ela estava prendendo também... Entreguei a bolsa dela e ela disse que gostaria que tivesse tempo pra fumar um cigarro. Rimos disso.
-E eu ainda sou sua menina.
Ela me abraçou um abraço longo, disse pra eu me cuidar que logo ela já voltava. Sempre preocupada com o que os outros sentem... Senti no olhar dela uma coisa meio “me diz alguma coisa”... Os olhos dela eram lindíssimos, uma coisa meio mel, sabe?
-Boa viagem, meu bem.
O avião dela partiu e eu não disse sequer “fica”.