domingo, 31 de maio de 2009

quando tudo fez sentido.


É sempre muito difícil falar das sensações que eu tenho diante das coisas.
Na verdade, nem de longe, eu sei falar delas.
Mas nesse caso - especialíssimo - eu vou tentar.
Entre hipérboles e superlativos, eu digo: se existe algum tipo de coisa que se aproxime do divino, esta coisa é estar no meio de uma multidão, com dores em quase todo o corpo, sem água, sem comida, sem cigarro (eu mal conseguia respirar, fumar nessas condições é pedir pra conhecer o divino logo) e mesmo assim, estar feliz. Alcançar o nirvana, you know?

Nesse dia - 20 de março de 2009 - eu acordei às sete e meia.
Não, vamos falar de um dia antes.
Dia 19 de março de 2009 eu fui dormir levando comigo uma euforia que eu só tinha visto algumas vezes na vida.
(quando minha mãe aparecia, quando eu beijei pela primeira vez, quando eu voltava do colégio, no carnaval de 2009...)
E então, depois de prometer dormir cedo, eis que dormi sei lá, mais próxima das cinco do que da meia-noite.
E eis que acordei às sete e meia do dia vinte de março. Decididíssima.
"Vou levantar, tomar banho, ajeitar o que há pra ser ajeitado e sair daqui às oito."
Ledo engano.
Saí de casa às onze, quase doze. Quando cheguei na Central já eram quase duas. Damn, pensei.
Perguntando aqui e ali "onde fica a praça da apoteose?"
E as pessoas diziam: "tá vendo o balança-mas-não-cai? Depois."
Eu não estava vendo, mas fui.
E fui ouvindo "I might be wrong" uma das que eu rezei pra tocar além dos meus fones.
Logo, depois, tocava "Knives out", outra que eu desejava ouvir em alta escala também.
E uma cena que eu jamais esqueço é esta: eu andando com um sorriso bobo na cara por uma das calçadas da central, balançando a cabeça ao som de knives out, como se os pivetes não existissem, como se o sol não existisse ("o sol nunca mais vai se pôr", penso), como se o trânsito apressado não existisse.
Cheguei na rua da tal apoteose e lá tinha uma fila exponencial.
Pensei: Fodeu, vou assistir o show dos portões.
E esse pensamento permaneceu até muito depois das duas, que era a hora em que eu cheguei lá.
Fui pro rabo da fila, fazendo curva no muro de grades da apoteose, uma coisa assustadora.
Sentei na calçada e lá havia um casal de mineiros, sorridentes, dizendo: É aqui o final sim.
Pois então, sentei, aumentei o volume do mp3 player (advinha que o tocava?), parei um ambulante pra comprar umas cervejas, acendi uns cigarros, quando uma meia hora depois, a fila anda. E não obstante, o coração dispara.
"Mas nem três são ainda!" Exclamam.
Alarme falso.
Pensei: No surprises, please.
E aquele momento de extrema ansiedade se estendeu até quase cinco.
Pus a ansiedade de lado pra falar ao telefone, não queria que fosse um telefone que nos unisse ali, queria ela de carne e osso, pra complementar aquilo que sim - meses antes - eu já sabia que seria a coisa mais extraordinária que me aconteceria.
Por fim, o telefonema acabou e um tempo depois uma correria estranha começava nos portões.
Gente saindo da fila pra correr dos lados e eu sem saber o que fazer.
Segui o fluxo, saí da fila pra correr e entrei nos portões junto com todas aquelas pessoas correndo como se fossem ver algo divino.
Eis que me deparo com uma pista, um corredor, um sambódromo de muitos km de extensão.
E nele, três barreiras. Três barreiras pro palco. Estava chegando a hora.
E naquela euforia louca, fomos parados por uma das barreiras e o segurança dizendo: "Se tiver bagunça eu não vou abrir!"
E nós parecíamos um bando de hienas, ou de leões atrás da presa, nada nos parava ali.
Eis que depois de muita conversa (e muito xingamento da nossa parte para com os seguranças), eles resolveram abrir.
E lá fomos nós correndo atrás do divino novamente, e lá fomos parados novamente.
"Identidades e ingressos na mão!" Gritaram.
Eram as catracas. Mais aquela barreira e o palco era nosso.
Muito empurra-empurra, eu achei um espaço pra passar na frente de todo mundo. E passei.
Logo depois, a revista. Pensei: "caralho, vou ficar sem câmera"
A segurança apertando minha bolsa, e perguntou: Tem algo de comer aqui?
E eu disse: Sim.
E dei o maldito (ou bendito) clube social que eu havia levado pra comer na fila, ou no show, e dei pra ela.
Melhor ficar sem comida do que sem câmera. A escolha mais estranha que já fiz na vida.
E eis a outra correria. A pior, diria.
Gente caindo, sendo pisoteada, zoada, e etc.
Nessa hora tenho certeza que todos os 'lentos' pensaram: Maldita aula de educação física que eu fui faltar!
Mas eu fui persistente. Mesmo com os muitos kg a mais, corri feito louca.
Corrida mais que válida, fiquei na 'segunda grade'.
Cheguei lá, entre o lado esquerdo e o centro do palco e abri um sorriso.
Era a sensação de vitória.
Sentei e liguei pra minha casa, meu primo atendeu
-Alô?
-Dinho, sou eu. Cara, eu tô na grade!
E foi só isso que foi dito.
Fiquei sentada por um tempo e os roadies estavam lá, ajeitando o palco pro Los Hermanos.
E nessa espera pelo Los Hermanos que começou o problema: Gente desmaiando de cansaço.
Os bares ficavam MUITO à esquerda de onde o pessoal tava, e não, ninguém queria abrir mão do lugar pra ir comprar água. Ninguém queria sair dali pra continuar vivo.
Eis que aparece o "mr. nice guy", o carinha (chamava Bruno, eu acho) com 4 copos d'água e todos ali em volta, filando a água do cara. Mas era pouco diante da nossa sede.
"Cara, não dá pra ir lá comprar mais..."
Ofereceram dinheiro pro cara ir comprar água, mas não, ninguém sairia dali mesmo.

Aí uma solução foi vista no meio daquilo tudo: Os ambulantes entravam no meio do povo vendendo água. Mas nós estávamos na frente (hell yeah!) e quando o cara chegava lá, já não tinha mais água.

Depois de muito, eu disse muito, esperar, conseguimos comprar água.

Primeira etapa: Sucessfull.

E depois dessa espera, começava o show do Los Hermanos.

Muitos xingamentos, muitos “pedobear”, muito muita coisa.

Entre haters and lovers, os caras começaram a tocar.

Meio desafinados, meio desacostumados com o palco, o show foi bonitão. Como diria o Camelo.

“Volta Los Hermanos! Volta Los Hermanos!”

-Mas a gente tá aqui, pô!

Cher Antoine e Assim Será.

Show maravilhoso, era bom ver uma das melhores coisas que o Brasil tem ali, diante dos meus olhos de novo.

Fim do show.

Ânimos animadíssimos, estava chegando perto.

E entraram os roadies do Kraftwerk (que eram eles mesmos, sem o superuniforme, pelo menos foi essa a informação que eu li dias depois)

Alguns muito empolgados, outros prevendo uma catástrofe musical e etc.

Eu estava no meio termo: gostava muito da banda, mas nada aquilo era o que meus olhos queriam ver.

Eis que uma menina que se dizia fã do Kraftwerk começou a atrapalhar a noite que começava.

A menina tentou de, momentos antes do show dos tios, até o fim do show do radiohead furar meu olho. Tomar o meu lugar.

Mas mesmo com dores OBSCENAS, eu mantive minha pose de guardiã. E fiquei sim naquele empurra-empurra com ela por mais de três horas.

E começava o show do Kraftwerk.

Um show seco, mas bonito. Um dos telões mais bonitos que eu já pude presenciar, e um bando de tiozinhos (com exceção do último membro do grupo, um menino quase, apelidado de ‘mostroopaunacam’).

The Robots, Musique non stop, The Model, Man Machine (o man, machine, machine, machine, machine, machine, machine, maaaachine ainda tá na cabeça das pessoas) e Radioactivity.

O show foi bom. Ponto.

Quando as luzes se apagaram... Tinha chegado a hora.

Não, ainda não.

Os roadies do Radiohead estavam no palco.

E o cara das luzes (e que luzes) ajeitando a posição das mesmas, e os instrumentos sendo ligados, e o microfone sendo testado, e os pedais sendo ligados e estava tudo pronto pro que seria o meu renascimento.

As luzes se apagaram. E o coração finalmente se deu o luxo de disparar como pouquíssimas vezes disparou.

E uma musiquinha inconfundível pra mim – e pra mais alguns xiitas – começava.

Um cara gritou: Puta que pariu, o Kraftwerk voltou!

Um comediante ou um desinformado, vai saber.

E começou.

Os primeiros acordes (ou batidas eletrônicas magistralmente comandadas por ele, Jonny fucking Greenwood) de 15 step soavam, muito mais que só música, nos enormes amplificadores e nos nossos ouvidos.

E as luzes foram acendendo numa velocidade que só nos deixava mais ansiosos.

Quando, não mais que de repente, aparecem eles.

Ed O’brien na minha frente, Colin Greenwood empolgadíssimo, Phil sempre na dele, por detrás dos barulhos perfeitos que saem daquela bateria, Jonny concentradíssimo, como sempre. E ele, Mr Thom Yorke just arrived.

Entra no palco dançando (pra minha surpresa), e só o que se ouvia eram gritos e mais gritos.

Me esgoelei. Acho que nunca gritei tanto na vida, de verdade.

E a música foi crescendo, e crescendo

E ele começou a cantar.

E foi a sensação mais inexplicável da minha vida.

Cantei a todo pulmões aquelas frases.

“Did your string come undone? One by one, comes to us all, is it soft as your pillow?”

Não havia explicação, sério.

No fim da música, éramos só sorrisos. Nós e eles.

O ed e o Thom fascinados com aquilo.

E então Thom Yorke pegou sua Jaguar azul e branca. E meu coração disparou mais um pouco porque eu sabia bem o que viria: Airbag.

Esperei ansiosamente pro início da música e lá estava a confirmação: era ela.

E eu gritei com todo o meu coração – já não era mais com os pulmões, sério –

“In the next world war

Jackniffed Juggernaut

I am born again.”

E sorri, e lágrimas escorreram do meu rosto, e aquela frase

“I am born again” definia aquilo tudo.

Definiu o show inteiro, definiu a espera inteira.

Definiu quando eles tocaram I Might Be wrong e eu fiquei louca da boceta por isso, definiu quando tocaram House of Cards e tudo que eu mais queria era ter quem tava a mil km de mim ali, do meu lado.

Definiu quando cantei de olhos fechados “Rain down, rain down, come on, rain down on me”

E quando gritei “Off with his head, man, off with his head man”.

Definiu também quando no fim do show, eu já não agüentava ficar de pé e eles me presentearam com Reckoner.

Definiu quando vi Thom Yorke voltar a ser o Thom de 93, cantando “But i’m a creep, i’m a weirdo, what the hell am i doing here? I don’t belong here”.

Definiu, entre hipérboles e superlativos, o melhor dia da minha vida.

one day "goodbye" will be "farewell"

Always be careful when you abuse the one you love
The hour or the day no one can tell
But one day "goodbye" will be "farewell"
And you will never see the one you love again
You will never see the one you love again

I have been thinking ("What with?")
My final brain-cell
How Time grips you slyly in its spell
And, before you know, goodbye will be farewell
And you will never see the one you love again

And the smiling children tell you that you smell
Well, just look at me - a savage beast
I've got nothing to sell
And when I die I want to go to hell
And that's when goodbye should be farewell

Ta-ta, ta-ta, ta-ta-ta
Ta-ta, ta-ta, ta-ta-ta
Ta-ta, ta-ta, ta-ta-ta
Ta-ta, ta-ta, ta-ta-ta

One day "goodbye" will be "farewell"
So grab me while we still have the time.

'socorro, eu ainda sou o morrissey'

de qualquer forma, something is squeezing my skull.

sexta-feira, 22 de maio de 2009

o que te sobra além das coisas casuais?

-Você demorou.
-Por que esse lugar?
-Não consegui pensar em outro.
-Hum.Você tá bem?
-Não sei. E você?
-Tô bem. 

(silêncio)

Ok, sejamos diretas. O que você quer falar de tão sério que não podia ser por telefone? E se for possível, seja rápida, não posso demorar.
-Não sei direito... Por favor, não vá embora. Eu sei que já faz tempo. Muito tempo. Mas eu precisava falar com você.
-Estou ouvindo.
-Você lembra da última vez que a gente se falou? Aquele janeiro?
-É claro.
-Lembra de tudo que foi dito naquele quarto?
-Aham.
-Lembra que eu não falei uma só palavra?
-Lembro.
-Pois então, eu te chamei aqui porque eu quero falar.
-Depois de dois anos? Isso é sério?
-Você acha que eu estou brincando?
-Eu espero que esteja. Por que isso é ridículo.
-Não é ridículo. Eu não quero nada, entende? Não quero nada de você. Só quero ser escutada.
-Mas eu não quero te ouvir. O tempo de falar, de usar a lei da reação já se foi.
-Por favor, eu juro que não vou tomar muito o seu tempo. Você quer uma cerveja? Eu juro que é o tempo de uma cerveja.
-Você sabe que eu não bebo cerveja.
-Era só pra te ouvir dizer que ainda lembra que eu nunca te ofereceria uma cerveja.
-Grande bosta. Me paga um vinho. Um vinho decente. Ou você continua pobre?
-Isso mudou também. Seco?
-Aham.

(pausa)

Não pretendo tomar mais de duas taças. Portanto, duas taças de vinho e alguns cigarros é o tempo que você tem.
-Tudo bem. Vou começar dizendo que eu venho pensando muito – na verdade todos os dias, em todas aquelas coisas que você me disse naquela noite. Na verdade, elas são latentes na minha cabeça, é impossível não pensar nelas. E eu venho pensando desde o dia que você pegou tuas coisas e foi embora, chorando porque eu não tinha falado nada, porque eu não tinha esboçado nenhum tipo de reação positiva ou negativa sobre tudo aquilo que você me disse. Por favor, olha pra mim.
-Pára de pedir por favor, pelo amor de Deus. Eu estou te ouvindo, isso não é suficiente?
-É, é suficiente. Então, onde eu estava? Ah. Eu andei pensando muito. E durante alguns meses – esses últimos, eu vi que não foi justo eu não ter falado nada. Não foi justo comigo e nem com você. Só que diante daquilo tudo que você me falou, o que eu pude te dar foi aquilo. O meu silêncio.
-E por quê?
-Por quê? Porque era o que eu podia dar, você não entende?
-Não. Não entendo.
-Eu só queria que você me entendesse. Entendesse o meu silêncio. Antes você entendia, não?
-É. Eu sempre entendi. Mas chega uma hora que cansa, sabe? Cansa ser o ombro amigo dos outros. Ninguém nunca tá ali pra ME dar a porra do ombro amigo. Então foda-se. Não entendo mais nada.
-Você sabe que a questão não é essa. Ninguém dá ombro amigo pra ouvir mentiras. E só o que você sabe fazer é mentir.
-Como você ousa dizer que ainda me conhece? Já faz tempo.
-Mas esse tipo de coisa não muda. Você vai sempre ser uma mentirosa.
-Foda-se. Eu não te perguntei nada.
-Tá vendo? Certas coisas nunca mudam, babe.
-Você quer ir direto ao ponto ou não?
-Tá. Eu vou. O que eu queria dizer é que eu não me arrependo.
-O que?
-Eu não me arrependo.
-Eu jogo mil coisas na tua cara, coisas duras pra mim, não pra você, há dois anos atrás e você me vem com a cara mais lavada do mundo pra dizer que não se arrepende?
-É.
-Então eu não tenho mais nada pra fazer aqui.
-Me ouve. Eu não me arrependo. Eu não tenho culpa se você mentiu quando disse que aceitava minhas merdas. O problema é todo teu. Eu não me arrependo. E nunca te chamaria aqui pra pedir desculpas ou qualquer coisa assim. Não seria eu.
-Eu devia ter imaginado, né? Eu não devia ter vindo.
-Mas veio. E isso deve significar alguma coisa ou o quê? Você veio olhar pra minha cara? Sentiu saudades?
-Saudade de você é uma coisa que eu não sinto há tempos. 
-Tem certeza?
-Não. Eu sinto sua falta, mas não é grave. A vida continuou, sabe? Você ficou pra trás, é isso.
-Você sabe que eu não fiquei pra trás.
-Você me chamou aqui pra falar por mim?
-Não. É que tá nos teus olhos.
-Não era você que dizia que meus olhos não diziam nada? Que eram tão dissimulados e mentirosos quanto eu?
-É, era eu. Mas isso tá fora do teu controle. Você não dissimula.
-Olha, meu vinho acabou e a minha paciência também. Tô indo embora. Até quando?
-Haverá um quando?
-Eu achava que não havia. E você me ligou. Então é possível que haja um quando.
-Eu te liguei porque eu precisava te dizer o que eu disse. Não preciso mais te falar nada.
-Ótimo. Se cuida, você tá horrível.
-E você está linda.
-O que é agora hein? Acha que só porque tem mais dinheiro, porque tem um português melhor e que tá mais bonitinha acha que vai me comer?
-Eu te comeria por ter um português melhor, mais dinheiro e mais beleza?
-Não. Teu corpo é uma das coisas que eu deixei de querer.
-Por quê? Por que não é preciso?
-Esquece isso, cara. Nossa fase de ‘quando júpiter encontrou saturno’ passou.
-Mas a gente tá aqui, não tá? Talvez o tempo de te ver no meu chá tenha passado.
-Tanto faz. Fica bem.
-Você quer que eu fique?
-Quero.
-Por quê?
-Porque eu cansei de te ver te enganando. Cansei de olhar pra essa tua cara surrada pela vida e ainda ver a criança assustada.
-Algumas coisas não mudam nunca.
-Pois é. Só se cuida. E não diz ‘eu me cuido sempre’ porque nós duas sabemos que é mentira.
-Tudo bem. Eu me cuido, então. Se cuida também. E não tenta mudar de número, ou de cidade de novo porque eu te encontro. Você sabe que eu te encontro.
-É, eu sei. Tá aqui o dinheiro da conta.
-Escuta. Me perdoa por não ter mudado?
-Que diferença faz?
-Eu só queria que.
-Eu te perdôo. Olha na minha cara, filha da puta. Esse é o teu perdão. Eu ter vindo aqui.
-Tudo bem. 
-Tchau.
-Tchau.

(pausa e quase fim)

-Ei.
-Que foi?
-Você lembra a última coisa que você me disse naquela noite?
-O que tem?
-Eu também te amo.

quarta-feira, 6 de maio de 2009

o descaso que condena

interromper
in.ter.rom.per

1 Fazer cessar por algum tempo;
2 Cortar ou romper a continuidade de;
3 Suspender;
4 Destruir, extinguir;
5 Cessar ou parar momentaneamente;
6 Deixar de fazer temporariamente;
7 Cortar, desligar (uma corrente de qualquer fluido);
8 Calar-se, falar de coisa diversa do que vinha dizendo, não continuar a fazer o que estava fazendo;
9 Cortar a palavra a;
10 Embaraçar, estorvar.


Em algum ponto muito além do permitido eu permaneci olhando o dicionário, varando a noite como se pudesse, como se fosse plausível.
Olhava aquele bando de palavras. De definições que não definiam nada. De explicações que confundiam, de adjetivos, de substantivos, de advérbios e todo lixo lindo da língua portuguesa.
Ali eu permanecia tentando encontrar algum sentido que não fosse tão vago naquelas palavras, tentando formar uma frase pra ligar pra ele e dizê-la.
Algo como: você não devia ter nos in.ter.rom.pi.do.
Mas eu não conseguia. Por mais que eu me esforçasse, por mais que eu lesse o maldito dicionário, fugia de mim. As palavras, os sentidos, tudo.
Ali eu ficava. Imaginando também.

Ele estava do outro lado da cidade, bêbado, cheirado, tanto faz.
Mas estava. E isso me dava uma sensação de companhia, uma sensação de ‘tudo bem, tudo bem’.
Mas não estava tudo bem.
Ele estar na mesma cidade que eu não me dizia nada. Não me era nada.
Eu tinha a sensação estranha de acreditar.
Acreditar que quando ele disse ‘me dá notícias suas, qualquer coisa me liga. Qualquer coisa mesmo’ 
Daquele jeito que ele sempre enfatizava o ‘mesmo’ final me dava a tal sensação de acreditar.
Mas era só uma sensação.
Porque eu não podia. God, eu não podia ligar e dizer ‘tô mal, vem aqui’.
Eu não podia dizer que sentia sua falta ou que precisava dele por mais um tempo, que nunca estive pronto para deixá-lo ir. Não podia.
Pensei em mentiras. ‘Você esqueceu seu suéter favorito aqui, aquele que compraste em Bogotá, vem buscar.’
Não podia. Ele não tinha um suéter favorito. Muito menos de Bogotá.
Eu não sabia o que fazer. Talvez só estivesse perdido e continuava a imaginar.

Ele está do outro lado da cidade, bêbado, cheirado, tanto faz.
Pensando em mim, quem dera.
Pensando em nós, pudera.
Pensando e só.
Era bom imaginar alguma coisa bem inverossímil do tipo: ele está mal, está com saudades, está pensando em mim, no nosso lar e em todas as coisas que nos envolvem.
Não, ele não está com um puto qualquer, daqueles que se arranjam em bares e esquinas.
Não, ele não está tendo um orgasmo agora, não está sendo chupado por um menino daqueles bem bonitinhos.
Não.
Ele está pensando em mim. Eu, com todos os meus defeitos físicos e mentais, com todos os meus pêlos que o irritavam, com meus medos e minhas dúvidas homéricas, todo aquele lixo que fazia parte de mim o encantava.
Cada detalhe meu, do mais nojento ao mais nobre o encantava.
Era bom imaginar isso.
Era bom imaginar que ele agora estivesse pensando em mim e nos meus insuportáveis defeitos.
Porque ele me ama, certo?
Por favor, diga que ele me ama e que tudo isso não é imaginação minha, que ele realmente está pensando em mim agora.

Ele está do outro lado da cidade, bêbado, cheirado, tanto faz.
Pensando nas minhas inúmeras qualidades.
Na minha postura centrada, nos meus discursos políticos, no meu gosto musical impecável, na minha seleção natural, em tudo aquilo que o encantava cada vez mais.
Eu era perfeito pra ele.
Eu tinha tudo que ele precisava.
Mas essa parte é invenção minha também.

Ele está do outro lado da cidade, bêbado, cheirado, tanto faz.
Com alguém mais bonito que eu, mais rico e mais interessante que eu.
Ele está em braços mais magros que os meus, mas ainda assim mais macios que os meus.
Ele está em alguma cama mais confortável que a nossa, com lençóis mais brancos que os nossos.
Ele está com gostos diferentes na boca: de vodka, de cerveja, de rum, de cigarro, de diferentes bocas, de diferentes corpos.
Mas eu permaneço aqui, sozinho, na nossa cama dura, nos nossos lençóis amarelados e com o gosto dele se misturando com o gosto de uísque.

Ele está do outro lado da cidade, bêbado, cheirado, tanto faz.
E eu aqui, imaginando comportamentos.
Cagando pra minha vida dentro dessa casa que um dia teve ele, nessas horas.
Talvez agora ele estivesse indo embora da casa do menino bonitinho.
E estivesse atendendo o celular que não pára de tocar nunca.
Entrando no carro, ignorando a ligação e pensando em ligar pra mim.
Mas o telefone não tocou.

Ele está do outro lado da cidade, bêb...
E foi aí que o telefone tocou.

-Alô?
-Oi.
-Quem é?
Eu sabia quem era.
-Você sabe quem é.
E ele também sabia.
-Ah, oi.
-Não te passe por surpreso.
-Não reconheci tua voz, desculpe.
-Enfim, como está tudo por aí?
-Tudo o quê?
-Tudo, sabe lá. Você e tua vida.
-Eu vou muito bem. E minha vida também. E a tua, como vai?
Eu precisava mentir, não queria que ele desligasse ao se deparar com minha tamanha falta dele.
-Eu vou do jeito que der pra ir, você sabe.
-Hum.
-Certeza que você tá tão bem assim?
-... Sim.
-Sei. Então, era só isso.
-Era só pra saber como tá tudo?
-Por aí. Tenho que ir viu. Acordo cedo amanhã, dia longo. Espero que você fique bem de verdade e que não minta pra mim na próxima vez em que eu ligar. Um beijo pra você.
Só consegui responder ‘outro beijo’.

E ele desligou.
Estava do outro lado da cidade, bêbado, cheirado, tanto faz.
Em casa, de pijama e por algum tempo, pensando em mim, a ponto de me ligar pra saber ‘como tá tudo’.
Peguei o dicionário, pus na gaveta e pensei que, felizmente, essa parte eu não tinha inventado.