terça-feira, 25 de março de 2008

As vírgulas

Encontrar aqueles olhos, pretos olhos que ficaram por incontáveis dias rondando o quarto que por ela nunca foi habitado, encontrá-los assim, de repente ao virar uma esquina, e o encontro ser tão breve que a única coisa que resta é a busca quase imediata do momento que se perdeu, que já foi.
Que roupa usava?
Já não sei.
Roxo?
Achava que sim.
O que mudou desde as noites ouvindo Gal no velho rádio?
Muita coisa de cá, mas e de lá?
Nunca saberei.
Talvez o mundo não seja pequeno, e nem a vida um fato consumado...
Eram expectativas cruéis, silêncios insuportáveis, palavras vagas, a incerteza mais clara que o céu da primavera, ausências presentes, solidão a dois, que mais?

Não lembro, nunca lembrarei.

Chorar por tudo que não aconteceu é o que resta nesta noite fria de agosto, olhando assim pra lua, ah como éramos piegas, neste quarto onde o meu cheiro se confunde com o cheiro da fumaça do cigarro que, se confunde com o cheiro que dói tentar lembrar, e que de repente surge como uma borrifada de perfume.
Que cheiro?
O cheiro do cabelo, o cheiro indefinível daquelas roupas que tirávamos com pressa, como se fosse a última.
Tateávamos-nos no escuro, como se fôssemos estrelas distraídas.
Ah, como éramos urgentes...
Éramos poesia líquida, que escorria pelos dedos e respingava nas cartas ingênuas trocadas dia após dia, com as frases fortes que tanto adorávamos, citações, músicas...
Aí você dizia: Que lindo.

Aplaudíamos rebeldias.
Éramos proibidas, interrompidas, cortadas ao meio a sangue frio.
Nos importávamos?
Não, nos bastava respirar o mesmo ar.
Ah, mas que trágico é o fim do grande amor.
Eu aqui, você lá.
Eu lembrando, você... Não sei.
Não tínhamos sonhos e nem planos, éramos breves.
Era minha por uma noite, era tua por toda vida se assim quisesse.
Éramos ásperas, desumanas.
Doía?
Como um corte: Ardia por alguns segundos.
Éramos gozo da madrugada longa, banhada por palavras duras e “Líricas”.
Éramos café fraco no sol da manhã que víamos nascer.
Éramos quase sem querer, giz.
Éramos um amor secreto debaixo do guarda-chuva.
Éramos feridas, sempre abertas e em carne-viva.
Sangrávamos fome, vontade.
Sangue inocente derramando de ambos os corações.
Sangue envenenado pelo medo.
O que somos hoje?
Páginas viradas – com orelhas.
Somos o ontem não resolvido de cada uma.
Somos vírgulas, reticências...
Poeira.
É saudade, então.


Gal Costa – Trem das Onze

4 comentários:

b-eat-rice disse...

de virgulas, em virgulas, creio eu que nem sempre há ponto final. (:

Rayla disse...

me atrevo a dizer que é o preferido

Victor Moraes, disse...

não, não há final. é um ciclo.

E ainda fechou o texto com Gal, maravilha!

Amanda Silveira disse...

pense bem, ou não pense assim *-)