sexta-feira, 8 de agosto de 2008

me-ism

Uma noite como qualquer outra.
Besta e escura, nem dava pra servir de inspiração como aquelas noites bárbaras com coisas acontecendo, sabe?
Luzes, placas de carro com 666, por exemplo, pessoas brotando, morrendo ou te parando na rua, nada disso.
Meus dias não servem de inspiração pra nadinha.
São todos iguais, entediantes.
Sou alguém (há controvérsias) atípico comparado às pessoas da atualidade, todos arrumadinhos e universitariozinhos com seus empregos SUPER satisfatórios, óculos ray ban e blusinhas ‘please don’t stop the music’,namoradinhas and namoradinhos descolados...
Sou feiamente normal, se for presa vão me currar porque não fiz faculdade, meu emprego é tão ridículo que nem merece ser citado, meu apartamento é tão feio que não é digno de visitas, minha única virtude é saber cozinhar, cozinhar pra mim, óbvio, bebo igual a uma filha da puta condenada, fumo do mesmo jeito...
Nada me interessa, de década em década alguém sóbrio me convida pra alguma coisa, e eu sempre digo não.
Mas às vezes eu saio pra ver uns amigos, sabe?
Pra não perder o costume, pra não esquecê-los e ser esquecida, odeio ser esquecida.
Quase sempre é uma bosta, a Elis sempre pergunta ‘o que você tanto faz que quase nunca nos vê?’ E dá uma risadinha daquelas forçadas, e eu respondo com uma igual.
O João sempre diz ‘e a vida?’ E eu sempre digo: que vida?
E nós rimos como se fosse engraçado, pedimos algumas cervejas, eles falam de suas vidas e nós esperamos ansiosamente pra que um de nós diga ‘tenho que ir’.
Às vezes eu também fico aqui parada, como fiquei naquela noite, olhando o telefone, esperando tocar, ligando e desligando a tv só pra haver algum tipo de movimento na sala.
E o resumo da minha vida ficava incomodando dentro da minha cabeça, e eu fui ficando com medo, com sei lá, peguei o telefone e liguei pra alguém..

-Tô te ligando porque minha internet não funciona, minha bebida acabou de acabar, o cigarro ainda tem, mas é, te liguei porque não tenho nada melhor pra fazer e...
-Eu esperava ouvir pelo menos uma desculpa falsa do tipo “te liguei pra saber as novidades”, mas como sempre, com você a gente só espera.
-Ainda bem. Por que esperou eu falar tanto?
-É mania. Eu gosto de ouvir recados, ouvir até o fim e deixar o povo achando que não tô nem aí, uma semana depois eu ligo e digo “queria falar comigo?”
-Típico. Mas por que me atendeu então?
-Em anos de amizade, as duas únicas vezes que você me ligou foi pra dizer que sua mãe morreu e a outra dizendo que ia casar, é sempre surpreendente você ligando.
-Só liguei porque não tinha nada melhor pra fazer.
-Você sempre tem algo melhor a fazer, a bebida acabou, sua internet tá ruim, mas provavelmente sua TV funciona e você ainda pode se masturbar, por exemplo...
-A TV não me interessa e já bati uma hoje, não foi bom.
-Tá. Vai dizendo... Tô traduzindo umas coisas, tô sem muito tempo, mentira. O que aconteceu, tá acontecendo ou vai acontecer?
-Me separei.
-Já?
-E agora eu tô com medo.
-Medo depois da separação, quanta informação.
-É medo de ficar só.
-Medo da solidão, babe?
-Pode ser. Isso se deu quando ela me deixou.
-Você não sabe o que é a solidão, mas foi ela que te deixou? Agora sim você me chocou.
-Esperava que eu a deixasse?
-Sinceramente? Sim.
-Acertou, veadinho.
-Hahaha. Sabia!
-Na verdade, eu só falei. Era uma coisa que nós duas esperávamos que acontecesse, mas nenhuma tinha coragem.
-Também não tenho coragem de me desfazer da minha poltrona velha.
-Tá. Lembra quando você disse que minha inconseqüência me assombraria pro resto da minha vida?
-Claro, a maior notícia que já dei pra alguém. Mas eu também lembro que você encheu a boca e disse ‘não me venha com seu mingau ralo de suposições, tô cagando pra isso.’
-Pode parecer absurdo o que eu vou dizer agora, embora a verdade seja exatamente este mesmo absurdo: eu menti.
-Mentir não é absurdo. Você acha que enganou quem? Algumas coisas nos perturbam até nos matar ou enlouquecer.
-Now i know how Joan of’arc felt, né?
-Vamos lá, pode começar a falar porque hoje eu tô cheio dos conselhos, inspiradíssimo.
-Todas as noites quando deito pra dormir, coisas terríveis passam pela minha cabeça.
-Me assustaria se passasse conto de fada.
-Às vezes eu acho que não devia ter casado, me separado, saído de perto da minha mãe, que devia ter feito faculdade, que não devia ter me afastado de todo mundo, ai.
-Às vezes eu também acho tudo isso aí. Quer falar da separação?
-Já faz quase um ano.
-Calma aí, já faz quase um ano e só agora bateu o medo que medo da solidão? E pior: Só agora me ligou?
-É. Achei que seria antiético te ligar pra falar do casamento e ligar pra falar da separação.
-Me poupe, você não é do tipo que liga pra falar que tá feliz. É a personificação do drama, do ditado ‘só procura quando precisa’.
-O que te faz pensar que preciso de você?
-Você me ligou pra falar de medinhos humanos, tenho vários motivos pra pensar que você precisa de mim.
-Filho da puta.
-Mas então, esse medo é de agora ou desde a separação?
-No começo eu achei que ia passar, sabe? Mas aí o tempo passou e não passou.
-Só você ainda acredita que o tempo é o melhor remédio.
-Eu acredito em muitas coisas agora.
-Tá vendo como não seria justo não te atender. Agora fala da separação.
-Eu tava pirando, ela tava pirando... When routine bites hard, and ambitions are low, sabe?
-Sing me something new!
-É sério. A gente não se agüentava, ou era isso ou o hospício mais próximo.
-Vocês se gostavam tanto. É deprimente ver uma coisa tão viva acabar nisso, casar devia ser proibido, sabe? Essa coisa de dividir tudo, até as loucuras e os cagaços pessoais assusta só de falar.
-É. A gente separou justamente por isso, ela chegou no meu âmago e eu no dela, aí boom. No final nós parecíamos aqueles casais que se apóiam nos filhos, sabe?
Ela dizia ‘vamos conversar’ e eu tirava a roupa.
-Hahaha! Pelo menos vocês transavam...
-É.
-Vocês exalavam libido, era lindo.
-A gente pode mudar de assunto?
-Não. Vocês ainda se falam?
-Sim.
-Se vêem?
-De vez em quando. E sim a gente trepa.
-Uh lá lá, e ainda é bom?
-Bom era antes, agora é incrível.
-Conta mais, adoro uma safadeza essa hora.
-Não tem nada safado pra contar, é sexo normal, ela me come, às vezes eu como ela e pronto, ela vai embora, mas ainda assim é incrível.
-Incrível? Vocês não dormem durante? Só de saber já fiquei entediado.
-Eu não sei nem por que a gente transa, é estranho, acho que nossos corpos são velhos conhecidos, fica mais fácil.
-Dur, agora a gente pode mudar assunto. Me fala dos seus medos, da solidão...
-Depois dela que eu fiquei assim. Ela veio, usou sua mágica, fez o que queria, até me fez pensar que eu podia sim ser feliz e não sentir como se tivesse um buraco no peito e foi embora. Fez o favor de acabar com a minha solidão e foi embora. Descobriu que por trás do meu bom português e da minha boa educação, existe um monstro e se assustou.
-Você esperava o quê?
-Que ela entendesse.
-As pessoas não entendem nada. Ou quase nada, dá no mesmo. Mas enfim, o ponto é: a gente só devia se meter onde entende.
-Não seria chato?
-Eu prefiro algo chato a algo inseguro.
-Eu não sei o que eu prefiro. As coisas chatas são uma chatice, e é da natureza humana fazer o que não entende.
-Será que é mesmo?
-Eu acho que é. Sei lá, as pessoas votam, não votam?
-E assistem filmes do David Lynch. Mas falando sério, eu acho que quando é com sentimentos as coisas pioram, as tentativas de entender.
-Tudo piora.
-Ninguém entende, como eu disse. As pessoas entendem tipo ‘entendo...’ mas entender corações, almas e monstros não é fácil.
-Ela também tinha um monstro. E eu entendi.
-Você entendeu porque queria que ela entendesse o seu, mas não foi isso que aconteceu.
-Não. Eu entendi porque amava ela, amava até os monstros, os medos, os choros, os canudos, tudo.
-Gente.
-Pois é, meu bem... Quem diria?
-Tô pasmo, mas onde é que você quer chegar? Na parte ‘me arrependi de ter separado’, é isso?
-Era necessário, não me arrependo. Me arrependo é de ter feito tudo errado no começo.
-Entendi.
-Eu odeio minhas decisões, elas sempre me soam tão impensadas, mesmo eu pensando um monte, sabe?
-Nesse caso, não foram ‘suas’ decisões, né?
-É. Mas ela sempre soube o que queria, eu não. Eu ainda sou muito insegura em relação às minhas decisões, me arrependo quando não devo e quando devo, não me arrependo.
-Ainda não aprendeu? Arrepender-se é cair no abismo.
-Você acha que eu vivo em quê?
-O que aconteceu com todo seu discurso de liberdade interior?
-Eu bem que tentei, mas fui deixando algumas características pelas calçadas.
-Voltaire disse: “Deus fez do arrependimento a virtude dos mortais”
Quintana disse: “Há noites que eu não posso dormir de remorso por tudo o que eu deixei de cometer.” Entendeu?
-Não.
-Você e metade da população mundial precisa se livrar da maldita herança de se arrepender daquilo que faz. Come on, vamos nos arrepender do que não fazemos e já tá ótimo.
De que adianta se arrepender do que já foi? É um ciclo vicioso: Você se arrepende, depois vai matando sua alma aos poucos, se arrependendo de ter se arrependido.
Você quer ser livre, mas sua vontade de seguir os padrões divinos te impede.
-Eu não sei o que eu quero.
-Eu sei que você não sabe, mas você quer alguma coisa, certo?
-Sempre.
-Basta.
-Basta?
-Aham. Morram todos que se conformam com o que têm ou o que podem ter.
-Eu me conformo com o que eu posso ter.
-Azar. Eu quero tudo, e ainda acho pouco. O mundo tem limites, eu não.
-Eu só queria ser feliz.
-Faz-me rir.
-Sempre fui egoísta, quero que o mundo se exploda por causa do petróleo, que as pessoas comam dinheiro, foda-se a paz mundial, só quero a minha paz, o meu dinheiro e nem quero petróleo.
-Você ainda lê Caio.
-É a única coisa maravilhosa que eu faço.
-Então, onde é que você errou?
-Ótima pergunta. Não sei.
-Sabe sim
-Errei quando eu disse que era suficiente, que não precisava do amor dela...
-Isso não acaba com nada!
-Acaba sim.
-Eu acho que você acabou com tudo quando disse que amava ela.
-Que?
-Vamos encarar os fatos: você é uma putinha com discurso bem ensaiado de ‘não amo ninguém’, descobrir que aí dentro bate um coração assusta.
-Nunca tinha pensado nisso...
-É, vai ver foi esse monstro carente-me-ame-de-uma-vez que assustou.
-Eu sou duas pessoas, três, quatro...
-Você é o que a situação exige, amor.
-É. Eu queria ter sido eu o tempo todo com ela...
-Quem é você? Mas ok, cheque mate, chegamos ao ponto
-Sim.
-Você é a rainha do se, meu bem.
-Tudo na minha vida quase deu certo, quase aconteceu, ‘se’ eu fizesse isso, ou ‘se’ eu não fizesse aquilo...
-A rainha do se, vivendo a vida do quase. Nossa, daria um filme!
-Um filme noir.
-É. Docinho, a conversa tá ótima, mas eu preciso voltar a trabalhar.
-Obrigada por me ouvir.
-Você me pegou num dia muito bom.
-Sabe, eu falei falei e falei e nem sei como você tá.
-Deixa a conversa descontraída e normal pra quando tivermos uns sessenta anos.
-Se eu te convidasse pra vir aqui seria muito estranho.
-Seria.
-Sei lá. Vem qualquer dia aqui, tô em casa sempre depois das seis, vem ver minha cara socada pela vida.
-Eu vou. Quero te pegar de calcinha varrendo a casa e fazendo macarrão, que tal?
-O máximo que vai conseguir ver são meus peitos através da camisa molhada de vômito.
-Tá valendo, apesar de nojento.
-Um beijo.
-Mil beijos, Maria louca.

E foi assim o fim da conversa que fez da minha noite um pouco menos solitária, aí eu liguei e desliguei a TV, a cat power cantou pra mim enquanto eu fui comprar mais bebida, aí eu vi pessoas brotando, luzes, carros e percebi que às vezes nas noites de frio é melhor nascer sim, pode ser bom, é uma questão de atenção.

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