segunda-feira, 26 de novembro de 2007

carta

Belo Horizonte, 22 de Agosto de 1988.

Não me ache estupidamente pretensioso por ainda te escrever.
Se o destino desta carta é igual ao de todas, peço-te pela primeira vez em todos esses anos, que pelo menos a leia, pois é a última vez que lhe escrevo.
Eu disse última?

(pausa)

Venho pensando em você, e não sei por que digo, pois há anos meus dias são cheios de ti.
Tu vives boiando em minha cabeça, assim como boiava em meus braços, como boiava em nossa cama...
Vejo-me num daqueles botes laranja em uma daquelas tempestades terríveis no pacífico.
A tempestade se chama Luiza.
E nesta tempestade a trilha é Jobim.

E isso me fez lembrar de coisas dolorosas, como que quando tu me dizias que uísque me deixava com mau hálito, e que tinha de fazer a barba, e todas aquelas coisas que tu me dizias todos os dias, que eram irritantemente lindas.
Eu sinto falta das tuas broncas e de como nós brigávamos por cigarro.
Eu sempre levava Galaxy, quando na verdade tu querias Marlboro.

E a saudade juntamente com o silêncio, paira.

Me sinto um completo analfabeto.
As palavras simplesmente fogem de mim, me sinto um aprendiz.
Não consigo escrever palavras que não saudosas pra ti.
Eu sei o quanto isso te irrita, pois eu ainda sei que tu não te simpatizas com a saudade.
Tu não permitias que eu te ligasse de madrugada, assim como aqueles casais em que nós nos espelhávamos quando decidíamos que não valia a pena formar um casal.
E isso sempre me satisfez.
Você fazia uma falta boa de sentir
Uma falta que seria suprida no dia seguinte
Com teus beijos secos e alcoolizados e esfumaçados e tristes e que explodia quando se encostavaaos meus.
Teus beijos foram os melhores.
Muitas mulheres passaram por minha vida depois de ti, mas nenhuma conseguia acariciar minha barba por fazer como tu fazias, nenhuma dormiu em meu peito como tu fizeste.
Lembro dos teus movimentos, dos teus suaves movimentos de moça-mulher.
Da sua sensualidade tímida até...
Lembro-me de tudo.

E tu flutuas...

Lembra dos textos de Garcia Márquez?
Das músicas-supresa de madrugada que tu fazias questão de pôr sempre?
Mas não um ‘sempre’ que fosse previsível...
Dos gritos enfurecidos por eu cismar de não fazer o que tu dizias.
Das palavras-faca que trocávamos ao sofá
Das tuas viagens intermináveis, mesmo que durasse um dia.
Dos teus telefonemas com um tom subjetivo, nunca assumindo pra que diabos ligou.
Da sua raiva por eu não saber fazer o seu maldito capuccino.
Lembra quando te dizia o que teu desejo era o meu desejo?


(pausa)

A carta está chegando ao fim.
A música está chegando ao fim.
A minha vida está chegando ao fim, e a sua também.

Minha barba cresce a cada dia mais rápido.
Já está branca.
Meu hálito ruim não terá jamais fim, pois ainda bebo uísque.
E o teu Marlboro está aqui.
E o meu Galaxy do lado.

E minha vida segue como um brilhante que partindo a luz explode em sete cores, revelando então os sete mil amores que eu guardei somente pra ainda te dar, Luiza.

Um beijo e outro.
Do ainda... Teu.

P.S: você pode ser a calmaria também.


chico buarque - tatuagem

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